Maria Cristina Lopes Quando a mente está leve a dança flui Psicologia da dança

Dançarina: Jussara Miller / Foto: Leo Lin

A criatividade é de extrema relevância para o profissional da dança, sendo uma expressão resultante da inter-relação entre fatores pessoais e ambientais. Assim sendo, é preciso compreender as motivações pessoais e as condições ambientais que favorecem o processo criativo do dançarino. Com o intuito de ilustrar o processo criativo na área de Dança, a bailarina, coreógrafa e educadora somática Jussara Miller concedeu entrevista para a psicóloga Célia Mundim.


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maria cristina lopes psicóloga da dança

Maria Célia Bruno Mundim é psicóloga com mestrado e doutorado em Psicologia pela PUC-Campinas. Professora conteudista, colabora com o grupo de pesquisa Avaliação Psicológica do Potencial Humano da PUC-Campinas e com o grupo de pesquisa Pensamento Crítico da Universidade de Salamanca (Espanha). Suas pesquisas e publicações envolvem temas sobre criatividade, talento e gênero como podem ser vistas no https://www.researchgate.net/profile/Maria_Mundim2 

maria cristina lopes psicóloga da dança

- Como desenvolve uma ideia/projeto? Pode descrever um exemplo de trabalho criativo?

JM: Eu trabalho com a Técnica Klauss Vianna de Dança e Educação Somática que reconhece a unidade corpo-mente em troca com o ambiente. Portanto, o meu processo de trabalho se pauta nos princípios da Técnica Klauss Vianna que tem como premissa a escuta do corpo para criar.

Os meus projetos de criação partem de uma ideia que me motiva enquanto pessoa, enquanto mulher. Nos meus processos criativos trabalho com o diálogo entre dança, literatura e fotografia. A escolha literária, geralmente, são autoras e poetas brasileiras. Já criei inspirada nas obras de Cora Coralina cujo o solo se intitulou “Cacos de Louça acaso Quebrada”; com Clarice Lispector, com o solo “Clariarce”; com Adélia Prado, com o solo “Cá entre Nós” e o solo mais recente é “Nada Pode Tudo”, inspirado nos poemas de Alice Ruiz.

Os meus processos criativos estão descritos em um capítulo dedicado exclusivamente para os trabalhos de criação nos meus dois livros: “A Escuta do Corpo: sistematização da Técnica Klauss Vianna” (Summus, 2007) e “Qual é o corpo que dança? Dança e Educação Somática para adultos e crianças” (Summus, 2012). De qualquer forma, eu darei um exemplo do processo criativo mais recente, o solo premiado “Nada Pode Tudo”. Com este solo, recebi o “Prêmio Denilto Gomes de Dança 2015” pela coreografia do trabalho e o meu marido Christian Laszlo recebeu o “Prêmio Denilto Gomes de Dança 2015” pela trilha sonora do espetáculo.

NADA PODE TUDO é um diálogo entre dança, fotografia e literatura, livremente inspirado em poemas de Alice Ruiz. O trabalho apresenta uma pesquisa em dança a partir do referencial somático com um refinamento de ações, com economia de palavras, sem desperdícios de movimentos, buscando uma dramaturgia do essencial, com sutileza, rigor, inventividade e precisão. Neste trabalho, a pressa dilui-se em respiração e o tempo dilata-se em movimento por meio da percepção do instante.

O solo NADA PODE TUDO é tecido pela intervenção das palavras da poeta: fragmentos, intertextualidades, citações e inflexões poéticas. Uma reflexão subjetiva ancorada no momento presente, revelando e multiplicando de sentidos as linhas, rastros e vestígios do mo(vi)mento à flor da pele, confirmando que há dança onde se vê dança.​ O diretor Norberto Presta teve um papel fundamental no processo de criação e provocação do diálogo entre dança, fotografia e literatura. Ele teceu com maestria a dramaturgia e a cenografia do solo NADA PODE TUDO. Christian, Norberto e eu já temos uma parceria de trabalho criativo nos espetáculos anteriores.

Jussara Miller é bailarina, coreógrafa e educadora somática graduada em Dança pela Unicamp. É mestre e doutora em Artes pela mesma instituição. É autora dos livros: “A Escuta do Corpo” (Summus, 2007) e “Qual é o corpo que dança? Dança e Educação Somática para adultos e crianças” (Summus, 2012). Recebeu os prêmios: “Prêmio Denilto Gomes de Dança 2018” pela Trajetória na Dança e o “Prêmio Denilto Gomes de dança 2015” como melhor coreógrafa. É docente da Pós-graduação em Técnica Klauss Vianna na PUC-SP e diretora/professora do Salão do Movimento, em Campinas/SP (www.salaodomovimento.art.br).

bailarinas dançando com tutu branco

Entrevista Jussara Miller | Processo Criativo na Dança

- Quanto às condições que influem no processo criativo:

Qual período do dia prefere trabalhar em uma ideia/projeto (manhã, tarde ou noite)?
JM: Prefiro trabalhar de manhã, pois estou mais disposta.

Há alguma condição meteorológica, ou seja, sente inspirada para criar e elaborar as ideias em dias chuvosos, frios, ensolarados ou independe?
JM: Eu tenho dificuldade em trabalhar em dias frios e chuvosos, parece que o corpo resiste ao movimento, fica tudo mais difícil, como menos disposição.

Quais condições ambientais favorecem o processo criativo: iluminação, temperatura, absoluto silêncio, presença de som ou de estímulo visual?
JM: Trabalho no meu estúdio, o Salão do Movimento, que é um espaço muito favorável para criar, com um chão de madeira agradável e próprio para a dança, uma sala arejada com amplas janelas que dão para um jardim silencioso. Tudo isto favorece muito o meu processo criativo. Me sinto em casa.

A alimentação ou outros afazeres de rotina ficam alterados (esquece de comer/almoçar, por exemplo) em função de ficar envolvida no processo criativo?
JM: Não, pelo contrário, eu fico bastante atenta em me alimentar bem, beber bastante líquido, dormir bem, ou seja, me cuidar, me preparar para criar.

O sono fica alterado? As ideias podem surgir através de sonhos? Faz uso de imagem(ens) para criar? Assim que acorda necessita fazer anotações das ideias?
JM: Sim, algumas ideias surgem através de sonhos, acordo pensando no trabalho em processo, faço anotações em diversos momentos inusitados do dia. As imagens fotográficas criadas para o solo me afetam na criação e outras que surgem pela leitura dos poemas, outras pelas provocações do diretor. Enfim, é uma rede de percepções durante o processo criativo, pois apesar de ser um solo, é um processo colaborativo de toda a equipe.

As ideias/ insight vem quando menos espera (por exemplo, quando está dirigindo)? As ideias surgem em momentos quando há relaxamento ou durante alguma atividade/afazer?
JM: Sim, as ideias surgem em momentos inusitados, quando estou dirigindo, dando aulas, dormindo, escrevendo. Em alguns momentos, também, quando estou relaxando, escutando música, passeando de bicicleta, caminhando, assistindo um filme, é muito variado.

Precisa de solidão/isolamento para criar e elaborar as ideias ou não?
JM: Sim, preciso de solidão para criar, mas me sinto muito à vontade e conto com o diálogo e as provocações dos parceiros de trabalho como: o diretor, o fotógrafo e a assistente coreográfica.

Fica totalmente absorvida durante o processo criativo, a ponto de nem perceber o tempo passar? E durante esse processo sente prazer/ satisfação?
​JM: Sim, fico totalmente absorvida durante o processo criativo e nem vejo o tempo passar. É muito prazeroso criar, porém há alguns momentos de impasse, quando alguma cena ou alguma coreografia não atinge o estado cênico almejado ou até mesmo por alguma limitação corporal em executar algo que você imagina, mas na prática o caminho é difícil e não acontece como você imaginava. Enfim, há momentos de prazer e de frustração também, mas no geral, a satisfação é muito grande em reconhecer a processualidade de cada trabalho criativo, que não se encerra na cena, mas continua vivo a cada apresentação. Assim como a vida, a dança é um processo.


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