Presente há milênios na história humana, dançar é uma das atividades mais naturais e, ao mesmo tempo, desafiadoras que podem ser executadas, principalmente quando falamos da dança técnica. Se isso parece exagero, basta pensar um pouco: bailarinos precisam memorizar e reproduzir movimentos, treinar exaustivamente para conseguir executá-los de maneira satisfatória, sincronizá-los com a música e, ainda, expressar sentimentos e emoções enquanto dançam. 

Por esta perspectiva, a dança poderia contribuir de maneira significativa para o desenvolvimento do ser humano, mudando seu cérebro a nível cognitivo e funcional. Essa é uma questão reforçada por um número cada vez maior de estudos, que acreditam que pesquisas envolvendo a dança e o cérebro podem ser esclarecedoras para conhecer a fundo a relação entre a mente e o movimento na humanidade.

O desenvolvimento do indivíduo e a dança

Partindo da teoria de Bronfenbrenner (1979) o desenvolvimento pode ser entendido como as mudanças ao longo do tempo na forma como uma pessoa percebe e lida com o meio ambiente - e, concomitantemente, a forma como ela mesma passa a agir sobre esse ambiente e transformá-lo. Em outras palavras, o desenvolvimento é fruto da relação entre o indivíduo e os diversos contextos nos quais ele se insere.

Sempre que estabelecida como um contexto importante e repetidamente presente na vida do indivíduo, a dança apresenta características peculiares que podem contribuir para o seu desenvolvimento em determinadas questões. De forma mais direta e explícita, é conhecido que a dança tem um impacto positivo para o desenvolvimento de habilidades motoras e artísticas, principalmente no universo infantil. 

Mas o contexto da dança vai além disso. O indivíduo estará exposto a estímulos culturais como música, coreografia e expressão; as relações sociais se darão de forma particular, com o mesmo espaço de aprendizado compartilhado pelo coletivo; lidar com as emoções será um aspecto essencial de uma prática que envolve ensaios exaustivos e apresentações em público.

Para além de amadurecer na dança, as habilidades adquiridas nesse processo podem ser transportadas para outros contextos. Por exemplo, ao aprender a expressar seus pensamentos e sentimentos através do corpo, é possível que uma criança apresente uma melhora na comunicação, na regulação de suas emoções e nas relações sociais na escola regular. 

Isso se deve a uma característica básica do desenvolvimento, que afirma que os diversos contextos em que está inserido o indivíduo afetarão a forma como este se desenvolve em todos os ambientes. Mas também tem a ver com um aspecto intrínseco do cérebro humano, a partir do qual a dança pode ter uma ação efetiva: trata-se da plasticidade cerebral.


A dança e o cérebro

Embora essa área ainda seja um imenso mar aberto a ser explorado, alguns estudos já evidenciam que a dança tem o potencial de desenvolver o cérebro.

Isso, porque longe de ser um processo automático ou instintivo, aprender e aprimorar movimentos exige do indivíduo o desenvolvimento das chamadas funções executivas (FE) do cérebro, aquelas responsáveis por planejar, selecionar e executar ações adaptativas das pessoas (Barkley, 2012). Em outras palavras, as FE são essenciais para a aquisição de novos padrões comportamentais e mentais (Gurd, Kischka & Marshall, 2010).

Algumas das mais conhecidas funções executivas estão relacionadas à memória de trabalho (capacidade de armazenamento temporário de informações que contribuem para a aprendizagem), ao controle inibitório (capacidade de interromper respostas automáticas) e à flexibilidade mental (capacidade de generalizar informações e criar correlações). Essas três funções são essenciais para o aprendizado da dança, que envolve atenção, memória, imagem mental e mesmo o uso de neurônios-espelho, essenciais para a reprodução de movimentos.

Uma vez que exige o desenvolvimento dessas funções, é fácil pressupor que a dança tem o poder de efetivamente promovê-las. Isso, porque o cérebro pode ser entendido como um sistema em permanente mudança, sendo a plasticidade cerebral uma propriedade intrínseca do sistema de reorganização nervosa envolvida nos processos de aprendizagem e desenvolvimento (Pascual-Leone, Amedi, Fregni & Merabet, 2005). 

A plasticidade é, em poucas palavras, a capacidade do cérebro de se moldar de acordo com os estímulos sensoriais, ações motoras, associações, recompensas, planos de ação e consciência do indivíduo. Nesse sentido, a dança desenvolve diversas habilidades que podem auxiliar no desenvolvimento humano global, como equilíbrio, postura, sincronização, memória, percepção, e expressão.

Com tantas habilidades envolvidas, diversos estudos mostram mudanças significativas a nível estrutural no cérebro, como aumento da massa branca e cinzenta e do corpo caloso, região que conecta e permite a comunicação entre os dois hemisférios - o que faz sentido, dado o número de processos simultâneos que a atividade exige.

O cérebro e a dança: dançar pode contribuir para o desenvolvimento

Maria Cristina Lopes. Sou formada pela PUC-Rio e mestre pela Universidade de Coimbra. Trabalho com a dança desde 2013 e desenvolvi o 1º curso de psicologia da dança do Brasil em 2016. Sou defensora da área de psicologia da dança, atendo bailarinos, ofereço consultoria para escolas e companhias e capacito professores e psicólogos nesta área promissora.

Contatos: mariacristinalopes@gmail.com | +55 21 990922685

Como explorar o poder transformador da dança

É certo que todos os indivíduos podem se beneficiar das transformações provocadas pela dança no cérebro humano. Porém, sobretudo na infância, quando a plasticidade do cérebro é mais acentuada, a prática da dança pode ser essencial para o desenvolvimento. 

Além de estimular o contato com o corpo, o mundo e as pessoas de forma orientada, a dança pode ajudar a criança a adaptar o movimento corporal a diferentes espaços e contextos. Estudos mostram que a dança pode contribuir para a melhora da atenção seletiva, velocidade de processamento e concentração, e também das habilidades sociais das crianças.

Outra faixa etária que pode se beneficiar dessas mudanças são os idosos. Estudos mostram que idosos que dançam podem melhorar a cognição, tempo de reação, habilidades visuoespaciais, atenção e humor, em um período do desenvolvimento humano em que muitas dessas habilidades podem entrar em declínio. Oferecendo múltiplas tarefas, aprendizado contínuo e contato social, a dança pode ser essencial para a qualidade de vida dos idosos.

Em suma, podemos dizer que, a despeito da óbvia relação entre as mudanças do corpo e a dança, cérebro e dança também apresentam um laço de desenvolvimento extremamente próximo. Talvez, em um futuro não muito distante, tal como facilmente identificamos um bailarino pela leveza de seu andar, moldado por anos de técnica e prática, seja possível identificar o cérebro de um dançarino, forjado nas inúmeras conexões e transformações necessárias para dar vida ao corpo que dança.


REFERÊNCIAS


Barkley, R. A. (2012). Executive functions: What they are, how they work, and why they evolved. New York, NY: Guilford Press.

Bronfenbrenner, U. (1979). The ecology of human development. Cambridge: Harvard university press.

Gurd, J. M, Kischka, U, Marshall, J. C. (2010). Handbook of Clinical Neuropsychology (2nd ed.). Oxford: Oxford University Press.

Lopes, M. C. (2021). Dance and Its Connection With the Brain and Its Functions: Possible Effects on Development. In Pessali-Marques, B. (Eds.). Scientific Perspectives and Emerging Developments in Dance and the Performing Arts, pp. 161-180.

Pascual-Leone, A., Amedi, A., Fregni, F., & Merabet, L. B. (2005). The plastic human brain cortex. Annual Review of Neuroscience, 28, 377-401.


COMO FAZER REFERÊNCIA A ESTE ARTIGO: 

Lopes, M. C. (2022, março 09) O cérebro e a dança: dançar pode contribuir para o desenvolvimento​ [Blog]. Recuperado de: https://www.mariacristinalopes.com/o-c-rebro-e-a-dan-a--dan-ar-pode-contribuir-para-o-desenvolvimento.html

Maria Cristina Lopes Quando a mente está leve a dança flui Psicologia da dança

Gabriela Romão. Jornalista formada pela Universidade de São Paulo (USP), é especializada em escrita científica. Estuda dança desde 2016, com ênfase em modalidades de dança de salão.

Contatos: gabi.r.romao@gmail.com | @romaogabriela