Maria Cristina acrescenta que muitos dançarinos iniciam sua trajetória na infância e desde cedo escutam sobre restrições alimentares e exigências sobre a estética corporal, o que afeta toda a construção da autoestima e autoimagem, formadas através do contato social. Raquel aponta que é comum que os distúrbios se desenvolvam na adolescência, um momento de maior vulnerabilidade do indivíduo.

“Quando falamos em crianças e adolescentes, a questão também é familiar. Muitos pais convivem por anos com as exigências de professores de dança com relação à alimentação de seus filhos e reproduzem os mesmos comportamentos. Seus filhos têm grandes sonhos, muitas vezes quase impossíveis, e eles tentam ajudar. É importante que eles tenham ciência do problema para se empenhar no tratamento, se for necessário”, diz a psicóloga.

Não apenas professores e pais têm papel nessa realidade. Transtornos alimentares são causados por múltiplos fatores, de forma que a responsabilidade por eles têm de ser compartilhada: companhias e escolas de dança carecem de profissionais que, para além do desempenho físico e técnico, cuidem da saúde global de seus bailarinos e alunos. Embora seja comum a presença de fisioterapeutas, por exemplo, a maioria das organizações não conta com psicólogos, nutricionistas e educadores físicos - o que, em outras palavras, significa que a integridade física e mental do indivíduo não são a prioridade dessas organizações.

O que pode ser feito

Melhorar a conjuntura onde dançarinos (em especial os bailarinos profissionais) estão inseridos parece ser um dos primeiros passos para diminuir o desenvolvimento de transtornos alimentares entre bailarinos. Isso começa pelas instituições de dança. Escolas e companhia devem se esforçar em ter em sua realidade profissionais competentes para falar sobre o assunto, especialmente psicólogos, psiquiatras e nutricionistas.

“A questão não é sobre verba. Não estamos dizendo que as instituições têm que ter esses profissionais todos os dias, mas sim que a presença deles deve se adequar à sua realidade. Fazer parcerias para a realização de palestras ou treinamentos, por exemplo, é uma boa opção. O custo é mínimo ou até zero, se pensarmos que eles estão perdendo não apenas desempenho, com bailarinos doentes, mas também pessoas, já que muitas não aguentam e acabam desistindo da dança, e em alguns casos, até mesmo vidas”, discorre Maria Cristina.

Para professores, a capacitação parece ser o aspecto mais importante a ser trabalhado. É muito comum que eles lidem com a formação de crianças e adolescentes sem conhecimentos além da técnica de dança para fazer isso. Em conjunto com as instituições, eles têm que estar preparados não só para não perpetuar essa cultura em sala de aula, mas também para observar os alunos e envolver os pais em sua formação, alertando sobre possíveis problemas nesse sentido.

Por fim, os bailarinos. Transtornos alimentares geralmente culminam em outros problemas, como ansiedade e depressão, e conviver com eles sem tratá-los é o caminho mais curto para se afastar da dança, seja pela desistência ou pela incapacidade física e mental de continuar. Para evitar isso, para aqueles que se encontram em condições parecidas com as mencionadas no texto, a mensagem da nutricionista Raquel é clara. 

“Existe tratamento. A alimentação saudável é aquela que nutre e não causa sofrimento, e é um processo específico de cada um. Não há problema em buscar auxílio com especialistas no assunto, que poderão dar todo o suporte necessário. Pessoas que procuram ajuda não são derrotadas, pelo contrário, são muito fortes”, finaliza.


​-

P.S.: Esse texto foi produzido com base em uma live realizada pela psicóloga da dança Maria Cristina Lopes e a especialista em transtornos alimentares Raquel Labonia. Para ver o conteúdo completo, acesse a live aqui. 


Raquel Labonia é nutricionista e especialista em transtornos alimentares pelo Abulim. Contatos: +55 11 989834111 / ig: @wellmove


COMO FAZER REFERÊNCIA A ESTE ARTIGO: 

Lopes, M. C. (2021, abril 26) Transtornos alimentares na dança: o que fazer para combater essa condição em escolas e companhias​ [Blog]. Recuperado de: https://www.mariacristinalopes.com/transtornos-alimentares-na-dan-a--o-que-fazer-para-combater-essa-condi--o-em-escolas-e-companhias.html

Maria Cristina Lopes. Sou formada pela PUC-Rio e mestre pela Universidade de Coimbra. Trabalho com a dança desde 2013 e desenvolvi o 1º curso de psicologia da dança do Brasil em 2016. Sou defensora da área de psicologia da dança, atendo bailarinos, ofereço consultoria para escolas e companhias e capacito professores e psicólogos nesta área promissora.

Contatos: mariacristinalopes@gmail.com | +55 21 990922685

No geral, dançar é uma das atividades mais antigas e uma das mais saudáveis do mundo. Vários são os benefícios já comprovados da dança para a saúde física e emocional do ser humano. Mas certos contextos de dança também podem adoecer. Estudos já apontaram que bailarinos - especialmente do sexo feminino - compõem um grupo de alto risco para o desenvolvimento de transtornos alimentares. Embora esses transtornos tenham causas múltiplas, alguns elementos do ambiente da dança, especialmente o profissional, podem contribuir e muito para que eles ocorram. 

Os transtornos alimentares são caracterizados, de forma geral, por perturbações no comportamento alimentar, na relação com a comida e na relação com o corpo, que podem levar ao emagrecimento, obesidade ou outros problemas físicos e emocionais. Existem diversos tipos de transtornos alimentares, sendo que em ambientes profissionais de dança, os mais conhecidos são aqueles relacionados ao emagrecimento: anorexia e bulimia.


>> Leia também: Consciência corporal e expressão: por que a dança deve ser ensinada às crianças ainda na escola

Conhecendo os transtornos 

Nas palavras de Raquel Labonia, nutricionista e especialista em transtornos alimentares, a anorexia é marcada por um comportamento alimentar extremamente restrito, baixa ingestão de alimentos, baixo peso (abaixo do recomendado para a altura e a idade) e sofrimento extremo em relação ao corpo e à comida. “Pessoas com anorexia têm um medo mórbido de engordar. Imagine o maior medo da sua vida. É assim que eles se sentem com relação a isso”, explica Raquel. 

Já a bulimia é caracterizada por episódios de compulsão alimentar, que não são simples exageros na hora de comer, mas momentos marcados por voracidade, perda de controle e sofrimento. Um dos sintomas também é a presença de um comportamento compensatório, que se caracteriza classicamente por vômitos, mas também podem vir na forma do uso abusivo de laxantes e diuréticos e da prática excessiva de exercícios físicos, a fim de que a comida ingerida não impacte a estética corporal.

É comum que dançarinos só recebam ajuda quando chegam a estados críticos, mas a verdade é que muitos desses casos passam antes pela fase do chamado “comer transtornado”. Raquel explica que nessa condição, as pessoas não fecham diagnóstico para nenhum distúrbio específico, mas apresentam uma relação conturbada com a comida e com o corpo, marcada por muita raiva, frustração e sofrimento. Geralmente, elas pensam muito sobre o assunto e gastam tempo ou dinheiro excessivos em soluções de emagrecimento. Nessas condições, também é importante buscar tratamento.


O papel das escolas e companhias de dança - e por que ele precisa melhorar muito  


E o que a dança tem a ver com tudo isso? Ela, em si, praticamente nada. Mas a realidade é que muitas escolas, companhias e até modalidades inteiras apresentam culturas extremamente propícias para o desenvolvimento de transtornos alimentares. O padrão físico exigido pelo ballet clássico, por exemplo, é um motivador para cobranças excessivas e níveis altos de insatisfação corporal, que não raro evoluem para distorções de imagem, um dos sintomas mais presentes em transtornos alimentares.

Os professores têm papel crucial nesse ponto. Para Maria Cristina Lopes, psicóloga e mestre especialista em psicologia da dança, o ambiente da dança incentiva o comportamento compensatório, principalmente na figura dos professores. “Quantas vezes já não vi uma situação em que o professor fala algo como: ‘Comeu um hambúrguer? Vamos fazer três aulas hoje para queimar então’. Não é por maldade, é uma reprodução do que ele mesmo aprendeu, e também uma falta de conhecimento sobre os efeitos disso para a saúde do aluno”.

Raquel corrobora essa opinião e afirma que o problema é ainda mais difícil de se tratar na dança por ser uma questão histórica e estrutural. 


​​“Depois de tantos anos perpetuando essa cultura, tudo na dança é considerado muito normal. Passar fome é “normal”, receber uma orientação alimentar do seu professor, em certos contextos, é “normal”. As pessoas não sabem que isso é um problema, é um tabu” - Raquel Labonia, nutricionista e especialista em transtornos alimentares.

Transtornos alimentares na dança: o que fazer para combater essa condição em escolas e companhias

Gabriela Romão. Jornalista formada pela Universidade de São Paulo (USP), é especializada em escrita científica. Estuda dança desde 2016, com ênfase em modalidades de dança de salão.

Contatos: gabi.r.romao@gmail.com | @romaogabriela

Maria Cristina Lopes Quando a mente está leve a dança flui Psicologia da dança